Amor e verdade. Verdade e amor.
Há uma razão especial pela qual escolhi falar sobre esses dois temas em conjunto e não separadamente. Já faz um longo tempo que cultivo o hábito de submeter os ensinamentos que recebo a respeito de Deus - sejam em pregações, livros, cursos, conversas ou mesmo durante a leitura da Bíblia - ao exame do que eles me dizem quando comparados ao relacionamento que mantenho com Ele.
Sim, à medida que conhecemos mais intimamente uma pessoa, é natural que com o tempo nos tornemos capazes de identificar os comportamentos que lhe são típicos. Então, quando alguém nos traz um relato de um episódio que a envolve, podemos reconhecer aspectos que são compatíveis ou incompatíveis com o que conhecemos dela.
Refletindo sobre as experiências que já tive e continuo a ter com Deus, algo tem progressivamente me chamado a atenção: a percepção de que em todas elas estão presentes uma dose profunda de verdade - exposta de maneira inequívoca e incrivelmente reveladora - e uma dose profunda de amor, de tal forma que sempre me sinto acolhido e encorajado, nunca exposto e condenado.
Verdade e amor. Sempre presentes. Simultaneamente. Em doses igualmente profundas.
Reconhecer o amor e a verdade como atributos relacionados a Deus não foi pra mim, e imagino que também não seja pra você, nenhuma novidade. Minha surpresa, contudo, foi entendê-los como indissociáveis. E mais: entender que a expressão de um sem o outro costuma produzir - e revelar - deformidades.
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Eu penso que lidar com a verdade é uma questão central para todos nós. Penso que ela é um divisor de águas na nossa vida e um fator determinante para o impacto que fomos criados para produzir. A Bíblia nos diz que abraçar a verdade liberará mais liberdade em nossas vidas. Abraçar a verdade para reencontrar a liberdade.
Mas essa não é uma tarefa simples. Aceitar a realidade, e lidar com ela, pode ser extremamente complexo, constrangedor, doloroso e até traumático. Então, para evitá-la, recorremos a todo tipo de artifício, atraídos pela tentação do conhecimento pronto, seduzidos por uma oferta massiva de atalhos e enganados por um número sem fim de distrações que nos estão disponíveis.
Há uma reflexão interessante sobre ter sido essa a questão ali no jardim entre Adão, Eva e a Serpente. A oferta do fruto do conhecimento representava a tentação do conhecimento pronto em contraste ao custo de um longo caminho de aprendizado e transformação. Uma versão menos demonizada de suas falhas e que evidencia o quanto somos freqüentemente atraídos por tal fruto - e não raras vezes nos alimentamos dele.
Não me entenda mal, não estou menosprezando suas dores, traumas e fracassos. Eu estou cheio deles. Em tantos momentos, como eu gostaria que desaparecessem num piscar de olhos. Quanto desejei que meus problemas, dívidas e fracassos fossem resolvidos por algum tipo de evento milagroso, por algum atalho. Eu já achei que não os suportaria tantas vezes. Já me senti injustiçado, e extenuado. E não quero reivindicar um mérito que não possuo ou uma capacidade que não tenho.
Mas eu tenho aprendido que por mais duros que eles sejam, desviar os olhos e a atenção não é o caminho. Que abandonar, ou negociar, a verdade não deve ser uma opção, sob nenhuma hipótese.
Tenho aprendido que o que precisamos é adicionar - ou, porque não dizer, abraçar - o amor em nossas vidas, com a mesma medida e intensidade com que encaramos a verdade, e jamais permitir que sejam desassociados novamente. Porque em meio a dureza da realidade da nossa condição e da materialidade da nossa agonia, só o amor tem o poder de nos acolher e aquecer o nosso coração. De nos consolar por nossas perdas e decepções, e nos redimir por nossas faltas. Só o amor é capaz de nos fortalecer diante de todo cansaço, dor e vergonha, e nos encorajar a seguirmos adiante. E é somente com ele que podemos ser curados estruturalmente e devolvidos à condição original da nossa identidade.
A verdade sozinha jamais fará isso. Sozinha, ela nos levará à culpa, à condenação, à perpetuação dos nossos traumas, ao desânimo, à amargura, à depressão.
Veja que a Bíblia diz isso de uma forma interessante: “não sejais demasiadamente justo ou exageradamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo?”
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Por outro lado, pense no amor sem a verdade.
Esse amor - manifesto sob a proposta de uma vida de conforto cujo propósito central é satisfazer nossas próprias vontades e caprichos; que vira os olhos para tudo o que lhe é desconfortável, com narrativas convenientemente construídas para o mero alívio de consciência; que só oferece elogios e que não aceita o não como resposta - no fundo não é amor. Ele produz permissividade, alienação, arrogância e superficialidade, e deturpa o verdadeiro valor do amor e da liberdade.
Como bem disse o Papa Francisco numa ocasião, que preocupa-lhe que a nossa geração tem confundido a felicidade com um sofá.
A Bíblia nos alerta para que o exercício da maravilhosa liberdade que recebemos não se torne um motivo de tropeço; que não a usemos como desculpa para estabelecermos um modo de vida totalmente desligado daquilo que realmente importa, ou ainda como pretexto para fazer o mal. Nos adverte também a que não adulteremos o amor e a graça de Deus em favor da perversão, da desonestidade ou indecência, por exemplo.
Assim, se a verdade sem amor nos conduz ao legalismo, o amor sem a verdade nos conduzirá à licensiosidade. Estejamos atentos portanto ao recebimento ou oferecimento sistemático de doses isoladas ou desequilibradas de um ou de outro.
Há uma outra reflexão interessante, que gosto de associar àquela do fruto como tentação do conhecimento pronto: a de que o caminho entre o Egito e a Terra Prometida, como representação da nossa trajetória entre uma vida de escravidão e liberdade, não tenha levado necessariamente os 40 anos que a Bíblia diz, mas que a menção a essa dimensão temporal tenha, na verdade, o objetivo de usar a referência desses 40 anos - considerados como uma geração na época bíblica - para transmitir a ideia de que leva-se uma vida para sermos transformados.
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Eis a minha oração:
Que possamos ser levados para fora da nossa zona de conforto; que sejamos confrontados com a verdade a ponto de nos libertarmos das ideias erradas que criamos e/ou das mentiras que se estabeleceram na nossa vida, que roubam de nós a oportunidade de nos reencontrarmos com a liberdade, a profundidade e a alegria.
Ao mesmo tempo, e em igual medida, que independente do tempo de igreja, de cristianismo, ou de qualquer outra religião que você tenha; que independente das experiências ruins que tivemos, das decepções que enfrentamos ou dos desafios que estejam diante de nós; que independente do estado emocional em que nos encontramos, e que a depressão ou a desesperança em algum momento tenham nos alcançado; e que independente dos erros que cometemos e do sentimento de culpa que possa nos rondar, que o amor de Deus nos alcance e nos preencha nessa jornada!
E, por fim, que entendamos que o amor e a verdade, associados, nos levarão a ter domínio sobre nossos sentimentos e a superar nossas dificuldades, no caminho do amadurecimento. E então, lutaremos em níveis progressivamente cada vez mais altos e mais complexos - e em meio a toda sorte de dores e complexidades, nos lembraremos, pelo testemunho das nossas experiências anteriores, que nós podemos vencer novamente, e novamente. :)
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