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Não tem valor se não tiver finalidade - sobre o que guia nossas decisões e interações. (#04)

Alguns anos atrás, estive às voltas com uma negociação de sociedade bem particular. Eu recebi a proposta depois de um encontro rápido e inesperado promovido por um conhecido comum, e concordei em avançarmos. Sua experiência era claramente diferente e complementar à nossa, e me chamou atenção a velocidade com que ele foi capaz de alcançar as inúmeras possibilidades e desdobramentos a respeito do que eu falara.


Fomos em frente em nossas conversas e, passado algum tempo, ele enviou uma pessoa para, por dois dias inteiros, nos sabatinar, analisar números, documentos, projeções etc. Ele estava cada vez mais entusiasmado com o negócio e a visão de futuro que lhe apresentamos. Depois de anos trabalhando na construção de um negócio que cresceu de forma surpreendente e que fôra objeto de interesse de investidores relevantes que nos buscaram, nós vivíamos um momento diferente. Eu estava diante de um dos maiores reveses que já enfrentei, uma luta angustiante que - aprendi - faz parte do risco inevitável de quem faz a escolha por empreender.


Uma vez que ele soube do momento financeiro que atravessávamos, a velocidade dos nossos avanços passou a dar lugar a uma curiosa demora. Digo curiosa porque estava absolutamente claro que seu interesse em momento algum se esfriou. Alguma coisa não se encaixava naquele conflito de sinais e eu fui alertado de que ele estaria estratégica e intencionalmente retardando as coisas para que nossa situação financeira se deteriorasse a ponto de aceitarmos uma proposta que lhe fosse mais atraente.


Eu me neguei a acreditar nisso, totalmente. Mas o tempo passou e, apesar da minha relutância, os sinais da sua estratégia se tornaram cada vez mais evidentes, o que foi me deixando com uma mistura de tristeza, decepção e indignação. Até que um dia, numa ligação, depois de uma confirmação que me foi simbólica, eu o comuniquei que, a partir daquele momento, ele poderia considerar que nossa negociação de sociedade chegara ao fim. Estava claro que eu não estava blefando e ele ficou desesperado, implorando a todo custo que eu reconsiderasse minha posição.


Marcamos um encontro em São Paulo e, numa conversa franca, eu expus minhas percepções, indicando todas as razões que me levaram àquela decisão. Eu falei sobre manipulação, sobre a desmedida agressividade das suas propostas, entre outras coisas. Eu sempre acredito no poder da verdade dita com cuidado e respeito, e não queria lhe apresentar motivos que não fossem os verdadeiros. No final, ele reconheceu ter usado aqueles subterfúgios e então me surpreendeu com uma pergunta que eu não esperava. 


Ele perguntou: 


- Como eu faço para mudar isso em mim?


Um parêntese antes de continuar…      



Há um livro excelente do Chris Anderson, presidente e curador-chefe do TED, chamado TED TALKS - O guia oficial do TED para falar em público, em que, ao compartilhar sobre algumas das armadilhas mais comuns numa palestra, ele fala sobre uma a ser evitada a todo custo: a conversa de vendedor. Ele diz que é fundamental que o palestrante sempre tenha em mente que ele deve fazer uma doação aos seus ouvintes, e não tirar algo deles.


Ele diz que os ouvintes sempre saberão identificar a diferença. Eu achei isso incrível e muito verdadeiro, afinal, é mesmo perceptível, e muito incômodo, quando nos deparamos com esse tipo de atitude. Eu li esse livro há anos atrás, mas nunca esqueci desse princípio. Na verdade, eu me apropriei dele, o modifiquei ligeiramente e o transformei numa espécie de oração e princípio que passei a perseguir. 


Eu passei a orar da seguinte forma: 


Deus, ajude-me a fazer com que todas as minhas interações sejam doações.  


Sim, todas. 


Essa doação pode ser um sorriso, pode ser simplesmente olhar nos olhos daqueles com quem falamos para verdadeiramente dar-lhes a nossa atenção e presença por inteiro; ela pode ser a necessária exposição da verdade, um conselho ou apenas um abraço; ela pode ser sua simples companhia, sua alegria ou o seu bom dia; ela pode ser seu conhecimento, sua experiência ou sua visão.


É uma questão da intenção com que você transita pelo mundo e pelos relacionamentos. De um olhar que não gira em torno de si mesmo, mas de como levar alegria, beleza, leveza, ao outro.


Uma das passagens que mais gosto na Bíblia é a que diz que o Reino de Deus não é uma questão de comida ou de bebida, mas de justiça, paz e alegria. Ela foi dita num contexto - super atual, aliás - em que as pessoas estavam mais ocupadas com a discussão e a defesa de teorias e posições do que com o exercício do amor e da compaixão direcionados ao outro. Eu gosto demais dessa afirmação. Ela se tornou uma referência na minha vida e uma das expressões que, na minha opinião, melhor definem a mensagem de Jesus. 


Digo isso porque, com alguma frequência, somos apresentados a definições de Deus, Jesus ou do Evangelho que são tão abstratas, complexas e “espirituais", que no fim são…. distantes. Mas essa não. Essa é uma definição com a qual eu me identifico e sou inspirado a seguir. Ela é simples, prática, acessível, inteligível. Ela fala de valores que não exigem nenhum conhecimento religioso para se buscar e exercitar.


Embora ela tenha sido dita por Paulo, durante muito tempo cultivei a ideia de que tinha sido dita por Jesus, pois ela trata de uma advertência muito recorrente em suas mensagens. Uma advertência para o que importa. Para o que realmente importa.


Um dos temas mais frequentes sobre os quais Jesus se dedicou a nos ensinar foi sobre o Reino. Além de anunciá-lo reiteradas vezes, Ele dedicou grande parte do seu tempo nos ensinando sobre seu modus operandi. Suas parábolas sempre começavam assim: “porque o Reino de Deus é semelhante a…”. É como se ele estivesse a todo momento dizendo: “Olha, vocês estão acostumados com valores e regras que não são aqueles sobre os quais o meu Reino opera. Vou ensiná-los como ele funciona. Vou ensiná-los sobre o que importa. Sobre o que realmente importa.”


Quando Jesus veio ao mundo, Ele se deparou com uma série de padrões estabelecidos. Padrões estabelecidos como verdades - inclusive no meio daqueles que tinham o Deus de Israel como Senhor. Mas Jesus confrontou esses padrões, não se identificando com uma boa parte deles. Ele se solidarizou com todas as categorias sociais que a sociedade judaica da época marginalizava, seja por desconfiança, desqualificação ou discriminação social, política e até mesmo religiosa.


Ele demonstrou isso na forma como tratou as mulheres, os doentes, os pobres, os cobradores de impostos, os samaritanos, enfim, todos os desclassificados da época. Ele também demonstrou maior preocupação com o exercício do amor, da compaixão, da reconciliação, e com a propagação da mensagem do Reino, frente a questões consideradas sagradas na época, como o respeito ao repouso sabático e ao próprio ritual de sacrifício no Templo.


Portanto, se olharmos para Jesus como exemplo, convém nos perguntarmos:


  • quais são as questões da nossa época relacionadas à justiça, paz e alegria?

  • Quem são os marginalizados e desclassificados de agora?

  • De que forma podemos combater a desigualdade, injustiça e indiferença, com as informações e ferramentas que dispomos hoje?

  • Como podemos contribuir para que o mundo seja mais justo para todos e não apenas para uns poucos?


E me refiro aqui tanto ao mundo no sentido global, como ao mundo da nossa casa, das nossas relações mais próximas. Eu penso que são essas as questões que devem ocupar o nosso tempo e receber nossa energia.


Recentemente, uma amiga me procurou interessada em saber mais sobre o tema do papel do homem e da mulher aos olhos de Deus; mais especificamente sobre ser ou não o homem o “cabeça da casa”. Ela esperava que eu trouxesse minhas considerações para que pudéssemos debatê-las.


Mas, depois de ouvi-la por alguns minutos, eu disse que minha resposta talvez fosse frustrá-la - o que pareceu ter despertado nela uma curiosidade ainda maior a respeito da minha opinião. Eu disse então que era porque eu não estava muito interessado no assunto. Disse que, mais interessado do que saber se o homem era o "cabeça da casa", eu estava em estimular que os homens - incluindo eu - aprimorassem sua capacidade de ouvir e de discernir, para que sejam capazes de seguir suas esposas todas as vezes em que isso for a coisa certa a fazer - e para saberem respeitosamente discordar e manter sua posição sempre que esse for o caso.


Você entende?


Eu penso que algumas discussões podem produzir efeitos nocivos em nós, ao nos manter ocupados porém inertes. Quantos homens estão tão ocupados em defender sua posição de “cabeça”, que perderam a capacidade de ouvir suas mulheres? Confesso que às vezes acho que algumas igrejas estão ocupadas com as questões erradas e com discussões inúteis.


Quando eu penso no Reino, em Jesus, Ele sempre me remete a uma atitude concreta na direção do respeito, da comunicação, da empatia, da compaixão.



Pois bem, depois do meu imenso parêntese, deixe-me voltar à pergunta que recebi naquele dia…


"Como eu faço para mudar isso em mim?”, ele perguntou.   


Eu dei a minha resposta então...


Disse que eu testemunhara por algum tempo suas interações e tinha a impressão de que ele sempre tinha em mente a ideia e a busca por estratégias sobre como tirar o máximo dos outros a cada interação. O máximo de serviço pelo mínimo de pagamento. O máximo de participação pelo mínimo de investimento. Tirar o máximo dando o mínimo; ou, se possível, nada.  


Disse - e fui sincero - que eu o via como um bom homem, sobre as inúmeras qualidades e capacidades que reconhecia nele, mas que eu tinha a sensação de que ele estava viciado nesse tipo de comportamento. Convenhamos, não é difícil se viciar nisso: infelizmente ainda vivemos uma cultura predominante nos negócios que privilegia, enaltece e promove os que usam sua astúcia, sagacidade, sua "mente rápida" - sempre ditas de forma elogiosa - em favor da exploração, injustiça e manipulação. Ainda aplaudimos os empresários que construíram e ampliam suas fortunas às custas do pior para todos ao seu redor. Pior: muitas vezes almejamos ser como eles, idealizamos suas vidas, seus hábitos e suas conquistas - e então perpetuamos esse tipo de comportamento. 


O que sugeri então - e que é o mesmo que deixo aqui como oração - foi que ele tentasse olhar para cada interação em sua vida como uma oportunidade de doação. Que tentasse experimentar esse exercício, de uma vida voltada para a doação... atenta, sensível e dedicada ao outro. Onde nossas conquistas, aprendizados e experiências não tenham um fim em nós mesmos, mas se estendam e tenham impacto aos que estão ao nosso redor - pessoal, local, global.


Você concorda? Qual a sua opinião?


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Não tem valor se não tiver finalidade - sobre o que guia nossas decisões e interações (#04)


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