"Seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar as próprias questões como salas trancadas, como livros escritos em uma língua estrangeira. Não se esforce agora para descobrir todas as respostas: muitas ainda não podem ser dadas a você porque você não tem sido capaz de vivê-las. E o que importa é viver tudo. Viva as perguntas por enquanto. Talvez então você irá gradualmente, sem perceber, viver seu caminho para a resposta, em algum dia no futuro." Rainer Maria Rilke (1903)
Eu fui criado na igreja. E ao longo do tempo certamente vou compartilhar sobre a quantidade gigantesca de privilégios e experiências memoráveis que isso me proporcionou e em grande parte moldou a minha vida. Ao mesmo tempo, tive o enorme privilégio de ter uma mãe que teve a coragem de ensinar e incentivar, a mim e à minha irmã, o exercício e o valor do pensamento livre e independente. Isso fez toda a diferença na minha vida e me deu a capacidade de identificar - sem ferir o respeito, a percepção de valor e a gratidão - algumas incoerências, contradições e arbitrariedades que eventualmente as igrejas são capazes de produzir e/ou se utilizar.
Uma delas é a de desincentivar - quando não a de proibir ou classificar como rebeldia - a busca por qualquer conhecimento que esteja para além das bordas que elas nos fixaram. Um péssimo hábito, que produz toda sorte de maus frutos se nos permitirmos abdicar do bom exercício das perguntas: nos mantém reféns da realidade limitada que nos apresentaram; nos tornam alienados e desinteressantes como pessoas; e nos privam da riqueza de aprender a conhecer e reconhecer a Deus para além do óbvio - de sermos surpreendidos por Ele nas ocasiões aparentemente mais inusitadas e improváveis, e de nos darmos conta de outras tantas que, embora carreguem o Seu nome, na verdade em nada representam quem Ele é.
Mas eu penso que o pior entre todos esses maus frutos é o de que ao desencorajar-nos a curiosidade, a apreciação pelas perguntas e a liberdade para fazê-las, somos roubados na essência do que fomos constituídos a ser: co-criadores cuja responsabilidade é construir caminhos para que entreguemos às gerações que virão depois de nós um mundo mais justo, lúcido e compassivo do que aquele que recebemos.
Pois bem, não há uma forma melhor de levarmos um assunto adiante, do que pelo exercício das perguntas!
Há uma frase que diz que um profeta é aquele que anuncia e denuncia, e ainda que eu não seja um profeta, estou aqui para denunciar a mentalidade que propõe - e aquela que aceita - a renúncia das perguntas, da curiosidade e da liberdade, e me opor a ela, firme no propósito de que experimentemos o exato oposto, e com a absoluta certeza de que Deus estará conosco seja qual for os mares em que nos arriscarmos.
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Há uma antiga história na Bíblia, sobre um homem chamado Jacó, que tem um sonho maravilhoso e quando acorda diz: “Sem dúvida Deus está neste lugar, eu é que não sabia!”
Até agora. :)
Veja que o poder dessa história está no fato de que Deus não mudou ou apareceu. Ele sempre esteve ali. Jacó foi quem despertou para uma nova perspectiva, para uma nova consciência a respeito de quem Deus é, e de onde Ele está.
As pesquisas mais recentes que revelam quantos de nós creem ou não creem em Deus, quantos de nós frequentam a igreja etc., mostram que em todo o mundo há um “colapso da religião”, e que é cada vez menor o número de pessoas que frequentam a igreja e que acreditam na interpretação literal da Bíblia. No Canadá, o número de pessoas que preferem seguir o seu próprio conceito subjetivo sobre Deus é três vezes maior do que os que seguem uma crença específica. Na Noruega e na Dinamarca apenas 5% da população frequenta as igrejas. Na Suécia e na Alemanha esse número cai para 4%, e na Rússia, para 2%. Nos Estados Unidos, nos últimos anos caiu de 40 para 30% o percentual daqueles que seguem a Bíblia literalmente e, na medida que o nível escolar aumenta, esse número ainda cai para 22%. No Brasil, nos últimos 20 anos registrados, aumentou em 70% o percentual de pessoas sem religião. E entre os evangélicos, somente na última década, o número dos que não frequentam a igreja aumentou mais de 500%!
Se observar com atenção você verá que os resultados não apontam para uma falência de Deus. Eles evidenciam a falência de um modelo.
Como diria um bom psicólogo, um resultado, por si, não é bom nem ruim, ele é o que ele é. Veja: perceber o colapso da religião, das igrejas e da interpretação literal da Bíblia, pode ser interpretado como algo ruim. Mas, pelo menos ao meu ver, entender que a nossa geração está sinalizando que as estratégias e abordagens antigas não estão funcionando hoje, é algo muito positivo. São como sinais vitais de uma geração que se recusa a aceitar uma mensagem que já não fala com seus problemas e questionamentos reais, aqui e agora. De uma geração que quer, e precisa, que a mensagem seja atualizada, compatível com a realidade em que está, com os recursos que dispõe, com o mundo em que vive.
Eu não tenho dúvidas que Deus não tem nenhum problema com o mundo moderno, que Ele não está focado no atraso, não se opõe à razão, à liberdade nem ao progresso. E eu penso que está mais do que evidente, para todos nós, que os sinais da busca do homem por encontrar significado à sua vida por meio de conceitos que transcendem o tangível - e por conexões que vão além de si próprio e de sua compreensão racional - estão por toda parte, e mais fortes do que nunca.
Mas qual é a questão então?
Eu quero oferecer uma resposta para sua reflexão. Ela está relacionada com uma pergunta que me fiz há anos atrás e que esteve comigo por um longo tempo.
Será que Deus evolui?!
Minha reflexão tinha diversas origens, mas uma delas era a observação da frequência com que as escrituras apresentam, entre o Antigo e o Novo Testamento, orientações tão distintas para uma mesma questão - ambas porém apresentadas como sendo resultado da expressa direção de Deus.
Um bom exemplo é o da famosa expressão “olho por olho, dente por dente”. Essa instrução, presente inicialmente no livro de Êxodo, é dita por Moisés mas apresentada como sendo as palavras do próprio Deus. Nela, a questão que se coloca é que se dois homens brigarem e um ferir o outro com danos graves, este outro poderá reivindicar que a pena lhe seja proporcional. Ou seja, olho por olho, dente por dente, mão por mão e, até, vida por vida!!
Mas, aproximadamente 1.500 anos depois, Jesus, o próprio filho de Deus, rebate expressamente essa orientação, dizendo que, agora, se numa briga alguém lhe ferir na face direita, você deve oferecer-lhe também a esquerda.
Ué?! Deus mudou de ideia?! Será essa uma versão 2.0 de Deus? Deus evoluiu entre essas duas histórias? O que aconteceu entre elas?
Pois é, a Bíblia está repleta de exemplos como esse. E alguns podem ser bem constrangedores.
Quando eu entendi que o conceito de penalidade proporcional colocado por Moisés foi estabelecido no contexto histórico de uma sociedade em que a vingança DESproporcional era a prática vigente, eu pensei: Uau!! É claro!! Moisés e Jesus estavam fazendo exatamente a mesma coisa! As instruções são diferentes no teor mas a mesma em finalidade. Ambas desafiam o status quo rumo a um próximo passo. Elas não representam a evolução de Deus mas sim ele desafiando e conduzindo a humanidade na direção de uma sociedade mais justa, amorosa e pacífica - exatamente aquilo que ele tem feito comigo, me ajudando a avançar, com amor e verdade, sobre minhas dificuldades, preconceitos, teimosias e confusões.
A evolução que está em jogo, portanto, é a nossa. A nossa capacidade de pensar, perguntar, repensar e então ampliar nossa compreensão sobre quem Ele é, onde Ele está, o que Ele deseja etc., para então ser essa mesma voz que Moisés, Jesus e tantos outros foram para a humanidade. Para prestarmos esse serviço à nossa e às futuras gerações ao desafiá-la um passo à frente. Como diz a passagem bíblica: “para que eles, sem nós, não sejam aperfeiçoados”.
Sempre que me lembro dessa experiência eu rio e me constranjo de mim mesmo, pensando em como fui presunçoso ao considerar a hipótese da evolução de Deus, sem me dar conta do óbvio: que o atrasado era eu. Somos nós. :)
Por outro lado, com o tempo eu percebi que não estava sozinho, e que essa mesma pergunta já levou estudiosos a publicarem livros interessantes sobre o tema - como é o caso de Deus: uma história humana, do Reza Aslan, e A Evolução de Deus, do Robert Wright.
E na medida que fui me libertando do medo das perguntas, eu descobri que a concepção de Deus que eu estava procurando era ampla demais para ser definida por qualquer religião, e percebi que as religiões nada mais são do que sistemas compostos de uma série de símbolos e metáforas criados para que tentemos comunicar, uns aos outros, e a nós mesmos, a experiência indizível da fé - mas que como tais, jamais serão capazes de transmitir a totalidade de quem Deus é. E não digo isso com o intuito de desmerecê-las, mas apenas para alertar que não nos limitem.
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Eis a minha ressalva…
Sim, eu desejo que os nossos encontros exercitem a nossa mente e nos ajudem a pensar, repensar e desconstruir os tantos modelos e estruturas de pensamento preconceituosos que recebemos ou desenvolvemos.
Mas não, eu desejo que os nossos encontros jamais se tornem meros exercícios de intelectualidade ou técnica. Eu desejo que eles possam nos levar ao lugar das experiências com Deus, e que nunca as substituam. Pois somente essas experiências, que não podem ser codificadas, plenamente descritas ou ensinadas, nos fornecem uma dimensão de entendimento, revelação e, principalmente, transformação, que não está disponível para nós por nenhum outro meio.
Elas criam registros em nós, no nosso coração. Elas nos mudam estruturalmente, nos curam estruturalmente e revelam nossa verdadeira identidade e condição como filhos amados, redimidos, acolhidos.
Elas tiram de nós a hesitação e, como numa música, nos alinham à frequência, ao beat, daquilo que Deus está fazendo - à criação.
E são elas que nos despertam para a consciência de que, como no caso de Jacó, Deus está aqui conosco!
Ele sempre está! :)
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